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TEXTO E ILUSTRAÇÃO POR MARCELO ARIEL
A GUERRA TRANSPARENTE
Hoje o nome de tudo
é dourado
diz o céu
de sangue
O mundo é um
paraíso incendiado
diz a Árvore
de fogo
dentro do menino negro
assassinado
O Passado
é o fantasma
do horizonte.
E o instante
um Sol
coberto
por nuvens
de palavras
sem alma
*Tamboro Teko Porã
Tamboro Y´Y´
disse a indígena guarany
enxugando as lágrimas
A guerra
é transparente
é um sono geral
onde sonhamos
que não estamos
sonhando
os cadáveres
de crianças, jovens e mulheres
que irão voar
por cima do lodo
e do mar de plásticos,
querem nos acordar
de suas bocas
sairá a luz
que queimará a névoa
da nossa covardia
vozes mudas
trazendo a revelação
da visão
do verdadeiro horizonte
que havíamos esquecido
junto com a lembrança
de estarmos dentro da vida
e com ela o delicado
triunfo escondido
na pergunta que nos tornamos
ao nascer:
Como amar os mortos
através dos vivos?
*Tradução livre do Tupy Guarany: O bom e o belo é para todos, o bom e o belo é como a água
HÁ UMA DIMENSÃO PARALELA
“O Universo é um albergue de miríades de coisas, e o próprio tempo é um hóspede dos séculos, em viagem. Esta vida flutuante é como um sonho’’
Li Po
Na outra rua
Pensar em dimensões paralelas
é evocar a fusão de mundos
como um modo de compor o mundo
O sentido de nosso rosto
é outro rosto,
que já foi o rosto da nossa mãe,
no sonho de ontem
algo que irá acontecer
novamente depois.
Em nossa infância
onde estão as senhas
para o presente
Na favela
Um projétil atravessou
a parede até atingir o espelho
libertando a imagem indomável
no Baile Funk
Deize Tigrona passou o microfone
para uma garota chamada Cleópatra
e o medo passou.
Em alguns encontros
No tempo vivo
o olhar de Carolina de Jesus
sorriu para o de Clarice
como uma resposta
Dennis Wilson
disse para Charles Mason
que tudo seria diferente
se ele soubesse cantar
Billie Holiday teve um
ataque de riso
ao ver Orson Welles
devorar um frango assado
inteiro dentro do táxi
Che Guevara
deu um abraço
tão forte em Jango
que ele teve que dar
um passo para frente para não cair.
Na primeira vez que você
entrou no oceano:
Era a Mata Atlântica
Uma libélula tocando na água
me lembra uma cena de Je vous salue, Marie
a mão tocando o ventre
nave do útero
fonte da primeira dimensão paralela
Depois:
A nuvem é a copa
A chuva é o tronco
O relâmpago é a raiz
e acordamos.
DOIS JOGADORES E SUAS METÁFORAS
Paulo Henrique Ganso se move
como a mão de um arquiteto
desenhando no campo
arcos precisos
esculpe a jogada,
em estado de contemplação ativa
sendo um jogador
e nada mais
nele sobra o que falta
aos políticos
o senso de participação
em algo maior do que o ego
sendo apenas um eco
do desejo de alegria
que desloca a guerra
para a metáfora
de uma quase sublimação.
É o meio do campo
o centro de um abismo domesticado
de onde um passado e um futuro
ludicamente calculados, espaciais
se entrelaçam
ao presente temporal
da passagem da bola
medida do triunfo simbólico
que atravessa o torcedor
através do jogador
entre a projeção
e a transfiguração,
há a paciência como
uma estratégia em construção.
Em Vinícius Júnior
é a ação pensamento
A ponta esquerda
se impõe como topologia
também para o País
que não compreendeu
que o negro da pele
é mais forte do que o amarelo da fome
e o dourado do ouro
Seu maior drible evocou a dança
de Muhammad Ali
duplamente presente
no instante em que ele fez o gesto
dos Panteras Negras
que iluminou a marca
do Quilombo que
na pele do inconsciente carregamos
nessa mesma pele o gesto escreve
An Attack Against One Is An Attack Against All
ainda assim não acordamos
e anos depois
tudo continua igual?
E aí, Brasil, como você vai sair do labirinto de ódio para chegar no deserto do amor?
COSMOTROPICALISMO NEGRO
Parte 1. Da contrahumanidade
Sou eu que vago diante do oceano vivo e negro
de todas as coisas que ainda não nasceram
através de mim o orvalho renasce no interior do sol
que é puro gelo de auroras
a manhã diz tudo para as árvores
através do vento elas sonham com a paisagem que as sonha
uma árvore tombou na tempestade
uma flor morreu num vaso branco,
O Paraíso:
o chão coberto de asas e folhas,
nuvens verdes no céu
uma porta se abre dentro
da casa vazia do caracol
de dentro dela a onda abriu-se,
misteriosa, e deitou-se sobre a areia
como um corpo: respirando
até nascer de si e retornar às vastas mãos do oceano.
Antes de nascer, eu era a matéria escura.
após meu primeiro nascimento sou a floresta encoberta.
Continuar a nascer é a demanda
de realização de um Quilomburoboro
onde o mundo toca em si mesmo e depois dissolve-se em si mesmo.
e isso implica em assumir-se
enquanto meio de expressão da alteridade imanente
a denominação como humano é uma grande vacuidade
somos entidades animais e sobrenaturais.
O humano é apenas o fantasma de um conceito.
A Terra pede que fundemos a Contrahumanidade.
O óbvio se tornou irmão do imponderável
O espírito da Contrahumanidade é Terrano
e efetua através das mutações climáticas
sua autodemonstração.
A Humanidade convergiu para a África
e de lá povoou a Terra.
A Contrahumanidade precisará
Amazonificar o mundo para nos salvar.
Marcelo Ariel é poeta, teatrólogo e ensaísta, nasceu em Santos, em 1968. Autor dos livros A água veio do Sol, disse o breu (Círculo de Poemas/Fósforo, 2024) , Afastar-se para perto-ficção-vida (Reformatório, 2024), A Hiperinclusão-Processos de cura da ferida colonial (Coleção Cordel/N-1, 2024) entre outros. Vive em São Paulo, onde coordena cursos livres de filosofia e poética desde 2016.
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