A guerra transparente e outros poemas

27/05/2025

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TEXTO E ILUSTRAÇÃO POR MARCELO ARIEL

A GUERRA TRANSPARENTE 

Hoje o nome de tudo 
é dourado 
diz o céu  
de sangue 

O mundo é um 
paraíso incendiado 
diz a Árvore 
de fogo 
dentro do menino negro 
assassinado 

O Passado 
é o fantasma  
do horizonte. 
E o instante  
um Sol 
coberto  
por nuvens  
de palavras 
sem alma 

*Tamboro Teko Porã 
Tamboro Y´Y´ 
disse a indígena guarany 
enxugando as lágrimas  

A guerra  
é transparente 
é um sono geral 
onde sonhamos  
que não estamos  
sonhando 

os cadáveres  
de crianças, jovens e mulheres 
que irão voar 
por cima do lodo 
e do mar de plásticos, 
querem nos acordar 
de suas bocas  
sairá a luz  
que queimará a névoa 
da nossa covardia  

vozes mudas 
trazendo a revelação 
da visão  
do verdadeiro horizonte 
que havíamos esquecido 
junto com a lembrança  
de estarmos dentro da vida  
e com ela o delicado 
triunfo escondido  
na pergunta que nos tornamos 
ao nascer: 
Como amar os mortos 
através dos vivos? 

*Tradução livre do Tupy Guarany: O bom e o belo é para todos, o bom e o belo é como a água  

HÁ UMA DIMENSÃO PARALELA 

“O Universo é um albergue de miríades de coisas, e o próprio tempo é um hóspede dos séculos, em viagem.  Esta vida flutuante é como um sonho’’  
Li Po  

Na outra rua 
Pensar em dimensões paralelas 
é evocar a fusão de mundos  
como um modo de compor o mundo 
O sentido de nosso rosto  
é outro rosto, 
que já foi o rosto da nossa mãe, 
no sonho de ontem  
algo que irá acontecer  
novamente depois. 

Em nossa infância 
onde estão as senhas  
para o presente 

Na favela  
Um projétil atravessou 
a parede até atingir o espelho 
libertando a imagem indomável 
no Baile Funk  
Deize Tigrona passou o microfone   
para uma garota chamada Cleópatra 
e o medo passou. 

Em alguns encontros 
No tempo vivo  
o olhar de Carolina de Jesus  
sorriu para o de Clarice  
como uma resposta 
Dennis Wilson 
disse para Charles Mason 
que tudo seria diferente  
se ele soubesse cantar  
Billie Holiday teve um  
ataque de riso  
ao ver Orson Welles  
devorar um frango assado  
inteiro dentro do táxi  
Che Guevara  
deu um abraço  
tão forte em Jango 
que ele teve que dar  
um passo para frente para não cair. 

Na primeira vez que você 
entrou no oceano: 

Era a Mata Atlântica  
Uma libélula tocando na água 
me lembra uma cena de Je vous salue, Marie 
a mão tocando o ventre 
nave do útero 
fonte da primeira dimensão paralela 
Depois: 
A nuvem é a copa 
A chuva é o tronco 
O relâmpago é a raiz  
e acordamos. 

DOIS JOGADORES E SUAS METÁFORAS 

Paulo Henrique Ganso se move 
como a mão de um arquiteto 
desenhando no campo 
arcos precisos 
esculpe a jogada, 
em estado de contemplação ativa 
sendo um jogador 
e nada mais 
nele sobra o que falta  
aos políticos 
o senso de participação 
em algo maior do que o ego 
sendo apenas um eco 
do desejo de alegria 
que desloca a guerra 
para a metáfora  
de uma quase sublimação. 

É o meio do campo 
o centro de um abismo domesticado 
de onde um passado e um futuro 
ludicamente calculados, espaciais 
se entrelaçam  
ao presente temporal 
da passagem da bola 
medida do triunfo simbólico 
que atravessa o torcedor 
através do jogador 
entre a projeção  
e a transfiguração, 
há a paciência como  
uma estratégia em construção. 

Em Vinícius Júnior 
é a ação pensamento 
A ponta esquerda 
se impõe como topologia 
também para o País 
que não compreendeu 
que o negro da pele 
é mais forte do que o amarelo da fome 
e o dourado do ouro 
Seu maior drible evocou a dança  
de Muhammad Ali  
duplamente presente 
no instante em que ele fez o gesto 
dos Panteras Negras 
que iluminou a marca  
do Quilombo que  
na pele do inconsciente carregamos 
nessa mesma pele o gesto escreve 
An Attack Against One Is An Attack Against All 
ainda assim não acordamos 
e anos depois  
tudo continua igual? 

E aí, Brasil, como você vai sair do labirinto de ódio para chegar no deserto do amor? 

COSMOTROPICALISMO NEGRO 

Parte 1. Da contrahumanidade 

Sou eu que vago diante do oceano vivo e negro 
de todas as coisas que ainda não nasceram 
através de mim o orvalho renasce no interior do sol 
que é puro gelo de auroras  
a manhã diz tudo para as árvores  
através do vento elas sonham com a paisagem que as sonha 
uma árvore tombou na tempestade 
uma flor morreu num vaso branco,  
O Paraíso:  
o chão coberto de asas e folhas,  
nuvens verdes no céu  
uma porta se abre dentro  
da casa vazia do caracol 
de dentro dela a onda abriu-se,  
misteriosa, e deitou-se sobre a areia  
como um corpo: respirando 
até nascer de si e retornar às vastas mãos do oceano. 

Antes de nascer, eu era a matéria escura.  
após meu primeiro nascimento sou a floresta encoberta.  
Continuar a nascer é a demanda  
de realização de um Quilomburoboro 

onde o mundo toca em si mesmo e depois dissolve-se em si mesmo. 
e isso implica em assumir-se  
enquanto meio de expressão da alteridade imanente 
a denominação como humano é uma grande vacuidade 
somos entidades animais e sobrenaturais.  
O humano é apenas o fantasma de um conceito. 
A Terra pede que fundemos a Contrahumanidade. 

O óbvio se tornou irmão do imponderável 

O espírito da Contrahumanidade é Terrano 
e efetua através das mutações climáticas 
sua  autodemonstração. 

A Humanidade  convergiu para a África 
e de lá povoou  a Terra. 

A Contrahumanidade precisará 
Amazonificar o mundo para nos salvar.  

Marcelo Ariel é poeta, teatrólogo e ensaísta, nasceu em Santos, em 1968. Autor dos livros A água veio do Sol, disse o breu (Círculo de Poemas/Fósforo, 2024) , Afastar-se para perto-ficção-vida (Reformatório, 2024), A Hiperinclusão-Processos de cura da ferida colonial (Coleção Cordel/N-1, 2024) entre outros. Vive em São Paulo, onde coordena cursos livres de filosofia e poética desde 2016.  

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