Marinês: rainha do Xaxado 

27/05/2025

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Considerada por Gilberto Gil a “mãe da música nordestina”, cantora fez sucesso com Luiz Gonzaga até despontar em carreira solo e tornar-se símbolo da cultura regional  (foto: divulgação)

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POR LUNA D’ALAMA

A palavra xaxado vem do barulho que as sandálias dos dançarinos fazem ao serem arrastadas no chão durante a performance. Denomina também um subgênero musical do forró (assim como o baião, xote, arrasta-pé, coco, piseiro, embolada, rojão etc.), com raízes no sertão nordestino. Popularizou-se com o cantor, compositor e multi-instrumentista Luiz Gonzaga (1912-1989), o “Rei do Baião”, que apresentou o forró e vários de seus subtipos a todo o Brasil. Foi Gonzagão, inclusive, quem nomeou a cantora, atriz e apresentadora Marinês (1934-2007) como a “Rainha do Xaxado”. 

Nascida Inês Caetano de Oliveira, na cidade de São Vicente Férrer (PE), em novembro de 1934, Marinês mudou-se ainda criança para Campina Grande (PB), onde iniciou sua trajetória musical em concursos de calouros. Segunda filha de nove irmãos que chegaram à vida adulta – entre 22 gestados por sua mãe, Josefa Maria de Oliveira, mais conhecida como Dona Donzinha –, a menina teve uma infância dedicada a cuidar dos irmãos mais novos, e suas bonecas eram feitas de sabugos de milho seco. De acordo com o filho mais velho de Marinês, o maestro, multi-instrumentista, compositor e produtor Marcos Farias, o primeiro programa de calouros de que sua mãe participou foi aos oito anos de idade, com crianças e adolescentes do bairro. “Ela ganhou uma caixa de sabonetes. Foi um luxo para a época e para a vida humilde que a família levava”, conta. 

Aos 14 anos, a garota Inês se inscreveu em outro concurso de calouros, mas resolveu trocar seu nome para Maria Inês (que o locutor da Rádio Borborema pronunciou Marinês – e assim ficou). A mudança se deu porque seu pai, o torneiro mecânico Manoel Caetano de Oliveira, que ganhava a vida fabricando armas e munições, ouvia muito o rádio e não aceitaria a filha nesse meio, por preconceito. O irmão mais velho, Ademar, disse ao patriarca, então, que levaria a irmã ao cinema, e os dois seguiram para a competição. Marinês cantou “Dez anos”, música composta por Lourival Faissal, e empatou em primeiro lugar com Genival Lacerda (1931-2021). Ambos dividiram o prêmio de 100 mil réis, e Marinês ainda virou cantora oficial da emissora. “Era uma moça pequena, magrela e com um vozeirão, afinadíssima. Quando o diretor da rádio levou todo aquele dinheiro para o meu avô, ele viu que havia sido ganho honestamente, e liberou a filha para trabalhar. Naquela época, ela cantava mais músicas românticas”, revela Marcos Farias. 

Esse foi o início de uma carreira de meio século, na qual Marinês gravou mais de 40 discos, atuou em filmes musicais (como as comédias Rico ri à toa, de 1957, e No mundo da lua, de 1958, ambas dirigidas por Roberto Farias) e apresentou o programa Marinês e sua gente, na TV Tupi. Além disso, foi a primeira mulher a liderar um grupo de forró e a ser considerada, pelo público e pela crítica, o “Luiz Gonzaga de saia”. “Ela aprendeu todo o repertório do Gonzagão, começou a usar chapéu de couro, a se vestir de Maria Bonita e a tocar triângulo. Formou a dupla Marinês e Abdias – O casal da alegria, ao lado do meu pai, músico e empresário dela, José Abdias de Farias (1932-1994). Mais tarde, eles viraram a Patrulha de Choque do Rei do Baião, antes mesmo de Gonzagão conhecê-los”, detalha Marcos Farias.  

O GRANDE ENCONTRO 
A Patrulha de Choque rodou o interior do Nordeste no início dos anos 1950, tocando e cantando (em praças, cinemas e outros espaços) os forrós de Gonzagão – que, ao chegar aos lugares, encontrava plateias com suas letras já na ponta da língua. Certo dia, um prefeito teve a ideia de apresentá-los a Gonzagão, sem aviso prévio. “Hospedaram o grupo em um hotel, e foi marcado um jantar, para o qual deveriam levar a sanfona. Ao chegarem, depararam-se com o Rei do Baião. Marinês se tremeu toda, teve até dor de barriga. Gonzagão perguntou: ‘Quer dizer que você é a Maria Bonita? A ideia de vocês é muito inteligente, toquem um pouco para mim’. E assim ele foi à loucura, achou excelente, e os convidou para trabalhar com ele no Rio de Janeiro, onde eu nasci. Meus pais chegaram a morar nos fundos da casa do Gonzagão, em Miguel Pereira (RJ)”, relata o primogênito de Marinês, afilhado de batismo de Luiz Gonzaga, que já foi pianista, sanfoneiro e diretor musical de Elba Ramalho. 

O ingresso na banda de Luiz Gonzaga ocorreu em 1954 e, dois anos depois, Marinês e o Rei do Baião gravaram o dueto “Mané e Zabé”, que entrou no disco dele intitulado São João na Roça (1962). O entrosamento entre os dois foi tanto, que Marinês fazia os vocais de apoio e abria os shows de Luiz Gonzaga e Seus Cabras da Peste, ao lado do então marido Abdias do Acordeon (também conhecido como Abdias dos Oito Baixos). Juntos, fizeram muitos shows no rádio e na TV. E o primeiro disco solo de Marinês (e Sua Gente) veio em 1957: Vamos xaxar. “Esse LP reuniu três grandes sucessos: ‘Pisa na fulô’, ‘Peba na pimenta’ e ‘Quadrilha é bom’. Foi um marco na música popular nordestina. São canções que tocam até hoje”, celebra Marcos Farias. 

(foto: divulgação)

Em entrevista ao jornalista Antonio Carlos da Fonseca Barbosa, para a revista Ritmo e Melodia, em novembro de 2005, Marinês declarou: “Sou uma profissional, onde for o show. (…) O importante não é o trono de rainha, mas subir no palco e abrir o gogó. É um orgulho e honra cantar as belezas, costumes e necessidades do nordestino.” A cantora definia-se como uma pessoa comum e singular, que gostava de receber elogios sinceros. “Se alguém diz isso ou aquilo de mim, eu acho é bom. Se as pessoas não cultivarem dúvidas e expectativas sobre o artista, ele perde a graça e o encanto. Comigo é fogo ou água”, resumiu. 

O filho mais velho, que trabalhou com Marinês desde pequeno (primeiro, fazendo participações especiais, tocando zabumba ou triângulo, e na vida adulta, como seu produtor e arranjador), emociona-se ao falar da matriarca, “uma mulher de coragem, à frente do seu tempo”, define. “Gilberto Gil disse que ela é a grande mãe da música nordestina. Era uma pessoa pontual, sincera, falava tudo na cara, mas sempre com amor e carinho. Generosa, comia ao lado de todos da banda, era mãe de todo mundo”, elogia Marcos Farias. Ele completa: “Foi uma mulher honesta, guerreira, consciente de seus direitos como mulher. Tinha a originalidade, a autenticidade e a ousadia dos grandes nomes da música nordestina”. 

PIONEIRA E INCANSÁVEL 
Quando Marinês estava com 50 anos, já separada, adotou um bebê recém-nascido: Celso Othon de Oliveira, hoje com 41 anos e pai da menina Maria Inês (cujo apelido, Inezinha, é o mesmo da avó famosa). Morador de Campina Grande (PB), Celso Othon foi atleta profissional de voleibol, formou-se em fisioterapia e hoje é coordenador patrimonial em uma fábrica de garrafões PET. “Aos quatro anos, ouvi falatórios de que eu era adotado, e perguntei isso a ela, que me respondeu: ‘Você é meu filho, sim, só não nasceu da minha barriga’”, recorda Celso Othon, que viveu com a mãe até os 23 anos, quando Marinês faleceu.  

“Marinês foi pioneira ao cantar forró em um mundo masculino, machista, enfrentou barreiras e abriu portas para muitas mulheres de gerações mais recentes, como Elba Ramalho, Lucy Alves e tantas outras. Mamãe foi minha ‘pãe’ (pai e mãe), era braba com seu 1,52 m de altura, e eu parecia o segurança dela, com 1,95 m”, relembra Celso Othon. O filho caçula da cantora a acompanhou em shows – chegou a tocar triângulo e agogô, mas não zabumba, como Marinês queria. “Ela me chamava de ‘zoiúdo’, ‘zoiudinho’, era noveleira (adorava O cravo e a rosa e Senhora do destino), tinha um ótimo senso de humor”, lembra.  

Ainda segundo Celso Othon, Marinês trabalhou até o São João de 2006, e já tinha o de 2007 agendado. No ano de sua morte, Marcos Farias cantou nas festas juninas contratadas, e o projeto recebeu o nome de Gente de Marinês. “Mamãe era uma pessoa simples, ativa, que ajudava todo mundo. Muitos brasileiros, sobretudo os mais jovens, não têm consciência do tamanho, da grandeza dela”, diz o filho mais novo. 

INSPIRANDO GERAÇÕES 
A cantora e compositora Anastácia, de 84 anos, viu Marinês pela primeira vez quando cantava na Rádio Jornal, de Pernambuco, em meados dos anos 1950. Tímida, não teve coragem de chegar perto da diva. Já na década de 1960, Anastácia foi ao Rio de Janeiro para participar do programa Noite impecável, na TV Continental, e lá conheceu, finalmente, sua conterrânea. “Marinês tinha uma personalidade muito forte, era escorpiana, mas sempre nos demos bem, eu era uma boa ouvinte. Não havia rivalidade entre nós, aliás, ela serviu de espelho e referência para todas as forrozeiras”, avalia.  

Segundo Anastácia, a amiga tinha uma voz forte, firme e muito bem articulada. “As mulheres, naquela época, geralmente cantavam baiões, falavam de amor. Ela, não. Marinês veio com garra, pisando o pé, xaxando. Foi uma das molas-mestras da cultura nordestina quando o assunto é o forró”, analisa. Marinês gravou mais de uma dezena de composições do casal Anastácia e Dominguinhos (1941-2013), como “De amor eu morrerei” (1974) e “Um mundo de amor” (1981). “Todo disco dela tinha alguma canção nossa, o que me deixou muito feliz”, comenta. 

Expoente da nova geração de forrozeiras, a cantora, compositora, multi-instrumentista e atriz paraibana Lucy Alves cresceu ouvindo e se inspirando em Marinês e em outros artistas desse universo. Lucy e Marinês chegaram a se conhecer nos anos 2000, quando Marinês participou de um DVD gravado com a família da cantora paraibana, o Clã Brasil, em João Pessoa (PB). “Cantamos juntas ‘Bate coração’, do grande compositor Antônio Barros (1930-2025). Nesse dia, Marinês se emocionou muito, pois viu ali um monte de jovens talentosas tocando e cantando juntas. Fomos ao delírio! Aquele vozeirão veio como um trovão, foi lindo”, rememora Lucy. Para a artista, Marinês tinha um jeito único de cantar, uma emissão potente, uma voz afinada, de “fibra e raiz tuberosa”, assim como a música nordestina. “Ela foi – e ainda é – uma escola para todas nós, cantoras. Deixou um legado incrível”, considera.  

A cantora, compositora e professora universitária Kelly Marques, que fundou em 2017 o grupo de forró Bando de Régia, em São Paulo, reforça o coro ao falar de Marinês. “Conheci-a por causa do repertório de Anastácia, do qual Marinês foi uma grande intérprete. Marinês gravou ‘Eu só quero um xodó’ (1962), de Anastácia e Dominguinhos, antes de Gilberto Gil. Tinha um timbre de voz agudo, anasalado, metalizado. Cantava com voz de peito e tinha uma dicção incrível. Era um jeito de cantar fincado na terra, uma característica que, mais tarde, virou escola”, explica Marques. A cantora do Bando de Régia coleciona dez discos de vinil de Marinês e destaca que, em 2021, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) reconheceu as “matrizes tradicionais do forró” como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil. 

Sou uma profissional, onde for o show, eu chego lá, seja de carro, avião ou em cima de um jumento. Adoro estar no palco, foi uma dádiva que Deus me deu. (…) É um orgulho e honra cantar as belezas, costumes e necessidades do nordestino. 

DA UNIVERSIDADE AO CINEMA 
A vasta obra de Marinês extrapolou o âmbito musical e chegou também à academia. Em 2009, a jornalista Claudeci Ribeiro, doutora em literatura e interculturalidade pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e professora do Instituto Federal da Paraíba (IFPB), defendeu a dissertação de mestrado A representação do Nordeste nas letras das músicas da cantora Marinês, na UEPB. “Queria descobrir que Nordeste era esse que Marinês cantava, e concluí que é uma identidade regional baseada na tradição, no orgulho de ser nordestina. As músicas de Marinês abordam temas como práticas culturais, festas juninas, danças, culinária, seca/chuva e o modo de falar nordestino”, detalha Ribeiro. 

Na visão da jornalista, Marinês é um ícone da cultura nordestina, com uma discografia riquíssima para se conhecer o Nordeste de meados do século 20 e do início do 21. “Ela ajudou a construir a visão simbólica de quem nós somos, sem os estereótipos da fome e da pobreza, mas cantando um Nordeste rico e vasto – aliás, os múltiplos Nordestes. Além disso, Marinês rompeu fronteiras e levou sua obra para fora da região, alcançando muitos lugares do país”, ressalta Ribeiro. 

Em fase de finalização, o curta-metragem Marinês: O estopim da bomba, dos diretores Ezter Liu, Kleber Camelo e Mery Lemos, presta homenagem à artista, a partir de depoimentos de mulheres importantes da música nordestina, como Anastácia, Terezinha do Acordeon e Cristina Amaral. “Não se trata de uma biografia, mas de uma abordagem sobre o papel precursor de Marinês enquanto mulher pioneira na música nordestina e brasileira, alguém que rompeu preconceitos e abriu caminhos para outras artistas num ambiente até então dominado por homens”, sintetiza Camelo.   

para ver no sesc / bio 
Festejos juninos 
Apresentações musicais, bailes, quadrilhas e programação especial do SescTV dedicam-se à diversidade cultural deste mês festivo

As tradicionais festividades do mês de junho ganham destaque na programação das unidades do Sesc São Paulo. Bailes, quadrilhas e outras ações musicais são algumas das atividades oferecidas para públicos de todas as idades. O SescTV também preparou uma grade de produções audiovisuais dedicada ao tema, com programações do Instrumental Sesc Brasil, além de especiais musicais.  

SESCTV
Especial Forró 
Programação comemora os festejos juninos com shows que trazem o forró como símbolo da alegria nordestina. Entre os episódios, estão: Oswaldinho do Acordeon (Instrumental Sesc Brasil), no dia 6/6 (sexta), às 12h; Gonzaga Rei, no dia 20/6 (sexta), às 21h; e Toada improvisada – 100 anos de Jackson do Pandeiro, no dia 27/6 (sexta), às 21h.  

24 DE MAIO
Show Night Club Forró Latino
Cantor e compositor Marcelo Jeneci apresenta EP realizado com participações dos mestres do pífano de Caruaru, Zé Gago e Bastos. O show mistura pagode, sertanejo, pop e reggae em versões forrozeiras, conduzidas por sua emblemática sanfona.  
Dias 7 e 8/6. Sábado, às 20h; domingo, às 18h. Teatro.  

PINHEIROS  
Show Baile Junino, com Trio Mana Flor
Atividade faz parte do projeto A Roda Delas, que conecta arte e protagonismo feminino, estimulando trocas entre artistas e público, ativando a praça como lugar de encontro e fortalecendo conexões com a comunidade.  
Dia 21/6. Sábado, 17h. Praça. Grátis.

No Sesc Pinheiros, o Trio Mana Flor aconvida o público a conhecer e dançar com a arte e o protagonismo femininos (foto: Caio Oviedo)

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